segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Cântico Negro


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!
"Eu olho-os com olhos lassos,(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde me levam meus próprios passos...Se ao que busco saber nenhum de vós respondePor que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...Eu tenho a minha Loucura !Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo,Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições!Ninguém me diga: "vem por aqui"!A minha vida é um vendaval que se soltou,É uma onda que se alevantou,É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Regio

domingo, 3 de janeiro de 2010

Duas da manhã,

E subitamente o meu coração disparou, o meu rosto voltou a empalidecer, um nó, um aperto sem fim no coração atacou-me sorrateiramente…e duas miseráveis e triste lágrimas caíram pelo meu rosto.
Não que te amasse mais do já amei, não que fosses a minha revelação na arte de conjugar o verbo amar mas, naquele momento, naquele tempo foi a ti que ofereci todo o meu corpo e todo o meu amor. A ti.
O pânico, o medo, o terror de voltar a ficar sozinha,
Sem companhia para o jantar,
Sem companhia para rir,
Sem companhia para sair com os outros casais,
Sem companhia para ser mimada e amada…
Fez – me acreditar, que o óbvio pode ser tingido na nossa imaginação por outras cores mais agradáveis, que as evidências podem ser muitas vezes simples coincidências tristes e que os factos podem ultrapassar a barreira do real e materializarem-se por si só.Como se isso fosse possível